domingo, 25 de fevereiro de 2018

Só as mães são felizes



Nunca mais vou poder ter filhos.

Eis a constatação mais dura. A afirmação que eu nunca quiz fazer. Aquela que eu evitei, mesmo quando em silêncio, pois queria acreditar que eu teria uma segunda chance. A chance que eu não me dei de ter a gestação dos meus sonhos. Meus sonhos viraram pó, junto com a estridência dessa afirmação.

Heitor vive me pedindo irmãos. É de cortar o coração ouvi-lo afirmar que é sozinho e não tem companhia para brincar. Moramos num edifício de velhos. Todos velhos, carrancudos e sem nenhum netinho. Passam direto por cada um de nós sem dar bom dia ou boa noite. Quando falam algo, é para pedir ou reclamar de alguma situação. Os velhos do meu prédio não atendem às necessidades de Heitor.

Quando ele nasceu, eu prometi pra mim mesma que iria dar-lhe o mundo. Que consertaria os erros de um passado recente e ergueria um castelo só nosso, como nos meus mais belos devaneios. O esforço pra ser aprovada num concurso fazia parte desse plano, uma tentativa de criar a realidade com a qual eu tanto sonhei.

Entretanto, os anos se passaram. Passaram voando, eu posso jurar. As muitas horas sentadas em cadeiras de todos os tipos, lendo quilos e quilos de direitos os quais apenas funcionam nos escritos, a hipermetropia que se agravou e os resultados que nunca chegaram, me fizeram perder os primeiros anos de Heitor e as esperanças de, um dia, vencer. Falta-me tempo. E um tanto de amor. Próprio e do outro. Mas sobre isso eu falo depois.

Nunca mais vou poder ter outro filho. Estou com 36 anos, correndo atrás de uma vida que parece fugir das minhas mãos. Preocupa-me o futuro que eu prometi a meu filho e, ao que parece, nunca vou poder lhe dar. Como posso, então, pensar em ter outro filho?

Eu fiz o meu melhor - e o meu futuro eu sei de cór.


sábado, 17 de fevereiro de 2018

Cinderela, o conto da carochinha e o monstro do nunca ser feliz.


CINDERELA, O CONTO DA CAROCHINHA E O MONSTRO DO NUNCA SER FELIZ

Era uma vez, num mundo adoecido pela indiferença, uma geração de mulheres criada sob a égide de falsas promessas. Todas elas – em maior ou menor grau -, cresceram ouvindo o conto da carochinha sobre uma vida sem qualquer magia ou graça, caso não possuíssem três elementos fundamentais: beleza extrema (ditada por um padrão inatingível); doçura agigantada (sem poder reclamar de nada – deveriam viver sempre sorrindo); e um homem o qual quisesse amá-las e salvá-las das bruxas más ao longo da vida (pois elas mesmas, sozinhas, jamais seriam capazes de tamanho feito). E, assim, criou-se uma horda de mulheres com a autoestima abalada e sem a real noção acerca da própria força.
Seria um (estranho) enredo de contos de fada caso não fosse a verdade nua e crua. As meninas nascidas nos idos dos 1970/1980 foram criadas sonhando em ser as princesas da Disney e, assim, quem sabe um dia, ser salvas por príncipes másculos, os quais transformariam suas vidas: as tirariam de calabouços; as despertariam de um sono profundo; as salvariam de dragões medonhos; as protegeriam dos monstros da floresta escura. As estórias, cada uma delas, malevolamente, davam conta de mulheres muito frágeis, desprovidas de força interior e, na maioria das vezes, sem qualquer personalidade. Existiam apenas para serem salvas. Depois disso…. bom, depois disso elas seriam felizes para sempre.
É o que a Psicóloga e Escritora Colette Dowling chamou de “Complexo de Cinderela”, em seu livro homônimo (editora Melhoramentos), na tentativa de explicar e compreender o número enorme de mulheres infelizes que se multiplica, em proporções geométricas, ao redor do mundo. Todas elas, com idades entre 30 e 50 anos, parecem sofrer de uma infelicidade generalizada, a qual Colette atribuiu à uma educação castradora, voltada para a dependência do outro. Depressão é uma constante. Assim como também o é um profundo desalento quanto a própria imagem refletida no espelho. Muitas se perguntam secretamente o que fizeram de errado: namoraram, foram gentis com marido, sogra, cunhada, papagaios; encontraram um ofício e o tal príncipe; casaram-se vestidas de princesas. Mantiveram o status e a beleza. Depois esperaram fervorosamente pelo “felizes para sempre” que, de fato, nunca veio.
Acontece que os autores dos famigerados contos de fada esqueceram-se de preencher lacunas importantes. Deixaram de esclarecer, por exemplo, a desnecessidade da vida ser uma espera interminável pelo mágico salvamento; não mencionaram que, além do matrimonio, há muito mais para ser vivido: festas, viagens, novos trabalhos. Negligenciaram a verdade da nossa passagem por aqui: a existência precisa ser vivida sem muitas expectativas, sendo urgente se aproveitar o momento, sem acreditar na máxima do “felizes para sempre”.
As tais fábulas nem mesmo explicaram que os tais príncipes nem eram tão encantados assim (não poderiam ser, coitados!): eles nem sempre seriam gentis, educados e corteses; muitas vezes magoariam aquele coração o qual tanto se guardara para ele; iriam arrotar e peidar bem nas faces apaixonadas de suas amadas; esquecer da data do casamento e, na pior das hipóteses, procurar outra princesa. Depois do “enfim sós” não havia a prometida felicidade eterna. Somente um terreno desconhecido, repleto de obstáculos para os quais aquelas mulheres simplesmente não estavam preparadas.
O resultado de tanta insatisfação com este depois pode ser constatado, por exemplo, na alta taxa de divórcios (que, em 2015, cresceu impressionantes 160%!) e, infelizmente, no índice alarmante de suicídios entre as mulheres – responsável pela morte de 2.5 mulheres a cada 100 mil habitantes. Foi o que concluiu Dayse Miranda, Pós-doutora em ciências políticas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Ela ainda descobriu que o suicídio feminino é precedido por mutilações corporais, as quais denunciam uma autopunição pelo excesso de cobranças da sociedade – é preciso ser uma mulher perfeita, uma mãe zelosa, uma dona de casa resoluta, uma esposa versátil, uma trabalhadora incansável e ainda conservar-se bonita e feliz o tempo todo (ufa!!). Não é de se espantar que tantas estejam preferindo dar cabo da própria existência.
Eu sou uma dessas mulheres-cinderela. Sofri durante muito tempo com expectativas que, à época, eu nem mesmo sabia não serem minhas. Acreditei por anos a fio que minha infelicidade seria resolvida com o casamento certo, pelas mãos do príncipe dos sonhos. Entretanto, como era de se esperar, eu me perdi no depois. Não entendia como a maternidade poderia ser tão dura – perdi o corpo o qual sempre fiz tanto esforço em manter -; meu emprego não era divertido, nem o salário dava pra pagar todas as contas; e o marido estava longe de ser encantado. Eu fui uma dessas mulheres a qual chegou a cogitar o suicídio e só não o fiz por ter sabido pedir ajuda quando estava prestes a desistir de tudo. Eu gritei em desespero e o mundo – ainda bem! -, ouviu meu chamado.
O meu apelo é para as meninas de hoje – pois tenho percebido um retorno perigoso desses (teoricamente) inofensivos contos de fada. Maliciosamente, eles foram transformados em filmes, estrelados por mulheres reais – creio eu, na tentativa de frear o processo de empoderamento feminino que, a galope, já começa a nos ultrapassar. Eu digo a vocês: não existe um felizes para sempre! A vida acontece a cada minuto, justo neste instante enquanto eu escrevo essas linhas tortas ou você as lê, no escuro do seu quarto, na faculdade, no parque ou onde quer que esteja. Você não precisa ser salva! Cada mulher é uma grande fortaleza, com ferramentas capazes de derrotar madrastas malvadas, bruxas assustadoras e dragões horrendos. O príncipe (ou princesa) também está morrendo de medo – salvem-se mutuamente! A beleza está na individualidade e nas peculiaridades de cada um – ame-se, adore-se, cuide-se! E mande docemente se lascar quem quiser lhe impor um padrão o qual não cabe em você. Seja feliz, menina! E viva!

(Mariana Lira - para o site "Vigor Frágil"  
http://www.vigorfragil.com.br/2018/02/06/cinderela-o-conto-da-carochinha-e-o-monstro-do-nunca-ser-feliz/#a-comments)

sábado, 10 de fevereiro de 2018

É de fazer chorar



Não fui ao carnaval em 2018. Fui, sim, a várias prévias, blocos perdidos pela cidade. Mas não fui ao meu carnaval. Às ladeiras da minha Olinda, que outrora me acolheram tão calorosamente. Não ouvi o frevo escaldante, que entra pelo cabelo e acaba no pé. Não fui contagiada pelo tsunami de energia de milhares de pessoas sendo felizes juntas. Este ano, estou órfã de carnaval. 

Foram tantas as razões que eu não sei mesmo precisar o porquê dessa abstinência de Olinda. Não ter com quem deixar o filho, estudos (forçados) acumulados, país precisando de acolhida, grana curta. Todos tão díspares e misturados que não seria mesmo preciso delimitá-los. No fim das contas, há tempos tenho medo das loucuras de Olinda. 

A última vez que estive no sobe e desce daqueles caminhos de paralelepípedo e óleo de baleia, precisamente há seis anos atrás, dei de cara com o encontro continental do Elefantes de Olinda e do Eu acho é pouco. Tudo isso, esse marzão de gente, subindo ou descendo a ladeira da prefeitura. No meio, bem no encontro eletrizante daqueles dois gigantes, estava eu - eufórica e apavorada, tentando sobreviver às suas passagens. De súbito, quando percebi, estava jogada no chão, gritando sem ser ouvida, quase pisoteada por uma multidão que só queria cantar e seguir. Foram 10 ou 20 segundos. Talvez mais, talvez menos. Mas depois disso, fiquei estremecida com o frisson das ladeiras da Marin dos Caetés. 

Este ano, entretanto, voltei a ouvir o chamado de Olinda ecoar dentro do peito. Seus tambores ressoando ferozes, num batuque de tirar o sono, a paz e o juízo. Dentro de mim, Olinda gritou, me chamando, quase em desespero. E eu, atônita, não pude atender ao seu chamado. As minhas ladeiras de Olinda, este ano, vão ter que ficar pra depois. 

Há certas renúncias muito doloridas de se fazer. São negativas à nossa própria essência, às nossas raízes. Uma dor tão imensa que não poderia ser exigida por ninguém, de ninguém. Tais renúncias nos fazem perder a referência de mundo que nos trouxe até este instante. A gente perde o rumo, o prumo, e passa um tempo desnorteado, sem saber como seguir. Perder as ladeiras de Olinda foi dessas renúncias que não poderiam existir. E isso eu não desejo pra ninguém. 

Ano que vem, quem sabe, quando os tambores começarem a tocar nas ladeiras de Olinda, eu possa ouvi-los, atenta, vestir a fantasia e partir, em êxtase, para minhas ladeiras. Este ano, reclusa, sonharei, tristonha, com o frevo que me transporta pra lá. Quem sabe assim, em devaneio, eu possa vivenciar a loucura colorida da massa, ver o Alceu na sua sacada, suar junto com tantos desconhecidos, cansar as pernas naquelas subidas enfurecidas e depois retornar tranquila para a existência de todos nós.