2015
foi uma ofensa ao Chico Buarque e à retomada democrática, a qual se
deu entre os anos de 1983 e 1988. Explico: em março de 2015, o dito
povo brasileiro saiu às ruas vestindo blusas amarelas e batendo suas
panelas, numa esdrúxula alusão ao movimento “Diretas Já”, o
qual clamava por eleições diretas, com o fim de pôr cabo aos
grilhões dos anos ditatoriais. Enforcada desde a revolução de
1964, quando, autocraticamente, o país foi tomado de assalto por uma
direita militarista e sanguinária, a população estava sedenta por
liberdade – de ir, de vir e de viver até. A solução foi sair às
ruas e, em uníssono, pedir pela devolução do poder ao seu titular
de direito. Nos palanques espalhados por todo o Brasil, a sociedade
se uniu em peso: religiosos, políticos, empregadores e empregados,
todos, sem exceção, rogando pelo fim da grande repressão.
O
Chico, militante ativo que era, escreveu, então, os versos os quais,
até hoje, são tidos como um hino do processo democrático. “Pelas
Tabelas”, canção que abre o disco “1984” do Buarque, fala de
um homem que busca, desesperadamente, por uma mulher em meio à
passeata que se deu em 16 de abril de 1984. Saindo da praça da Sé
em direção ao Vale do Anhangabaú, em São Paulo, um milhão e meio
de pessoas desejavam, juntas, poder votar para presidente. O objetivo
do movimento era pressionar o congresso a aprovar a Emenda
Constitucional Dante de Oliveira, permitindo, assim, que, no ano
seguinte, fossem realizadas as primeiras eleições democráticas em
duas décadas. Mesmo não tendo logrado tal êxito, a manifestação
não foi de todo em vão. Em 1985, uma eleição indireta de uma
chapa civil foi realizada, tendo eleito como Presidente o falecido
Tancredo Neves e, em 1989, foi conquistado o tão sonhado sufrágio
universal.
Com
inteligentes analogias, Chico usou o termo “pelas tabelas” para
conectar diferentes interpretações, num jogo de cintura essencial
para driblar a censura da época. No trecho “...quando vi a galera
de pé aplaudindo as tabelas...”, o cantor provavelmente referia-se
ao futebol da seleção canarinho na copa de 1982, a qual,
contraditoriamente, não ficou nem entre os 5 primeiros colocados. Em
outro trecho, quando fala “...eu jurei que era ela que vinha
chegando com minha cabeça já pelas tabelas. Claro que ninguém se
importa com a minha aflição...”, o também compositor dá a
atender que teme pela perseguição do que a época era chamada de
“Dura”, a polícia do golpe.
Em
um outro trecho, Chico afirma “... quando vi um bocado de gente
descendo as favelas, eu achei que era o povo que vinha pedir a cabeça
do homem que olhava as favelas, minha cabeça rolando no
maracanã...”, tecendo um emaranhado caminho para criticar um
movimento que, talvez, não estivesse sendo propriamente popular ou
completamente a serviço do povo. E mais uma vez escapole quando
insinua que sua cabeça, na verdade, estava com todas as atenções
voltadas para o futebol. Crítica atrás de crítica; com uma porrada
em cima da outra, Chico nos presenteou com um hino difícil de
cantar, cujo ritmo aumenta a cada nova estrofe, denotando a urgência
de uma época histórica.
Depois
de tamanha introdução, é preciso, agora, explicar por que 2015 foi
uma ofensa a tal composição. Naquele ano, milhares de pessoas (os
patos do novo golpe), novamente vestindo blusas amarelas (todas elas
da seleção), foram às ruas, cantando o hino nacional, empunhando a
bandeira brasileira e gritando palavras de ordem contra a corrupção.
O curioso é que todo este movimento tinha como fim derrubar um
governo democraticamente eleito, no qual havia liberdade de
expressão, direito de ir e vir e que dava continuidade a um projeto,
iniciado em 2003, de empoderamento das classes mais pobres
brasileiras. O país havia saído do mapa da fome da ONU; a dívida
externa tinha sido paga; os cofres públicos estavam com superavit; o
salário mínimo subia acima da inflação; mais e mais pessoas
puderam ter acesso à formação superior; e os pobres começaram a
andar de avião, usar marcas antes somente das classes mais abastadas
e acreditar que o mundo, enfim, era para todos – e não apenas uma
minoria.
Esta
minoria – o 1% que concentra a maior parte da riqueza brasileira -,
provavelmente se viu muito incomodada com essa mescla de classes,
nunca antes vista neste país (só para usar um bordão do Lula). A
mídia, em polvorosa, uniu-se à classe política que apoia as
grandes fortunas e os grandes empresários, e, aos poucos, sedimentou
nas pessoas a certeza de uma crise econômica a qual derrubaria o
país. Parêntese: você sabia que é assim que uma crise econômica
se inicia? Alguém muito influente começa a afirmar que vai faltar
dinheiro no mercado; as outras pessoas – as quais confiam em sua
opinião -, então, retêm suas economias, na esperança de
protegê-las de uma eventual desvalorização. Assim, o dinheiro para
de circular e os bens de consumo deixam de ser vendidos, abarrotando
os estoques das empresas e seus empresários de dívidas. Pronto.
Está instalada a mais nova crise econômica. Fecha o parêntese.
Com
a suposta crise econômica instalada e o apoio massivo dos meios de
comunicação – que, ou pertencem aos políticos, ou aos grandes
empresários os quais integram aquele 1% dos mais ricos -, ficou
fácil desacreditar um governo que, meses antes, tinha a aprovação
da maioria dos cidadãos. As passeatas de 2015 estavam repletas de
gente que nem sabia contra o quê estava protestando. Estavam com
medo. E o medo é a melhor forma de manipular um povo
educacionalmente fraco. No meio disso tudo, teve espaço para apoio
ao Ustra
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Alberto_Brilhante_Ustra),
pedidos pela volta da ditadura, gente fazendo coreografias grotescas,
com músicas pedindo o fim da corrupção, apologia ao estupro da
Dilma Roussef, nossa então Presidente da República. Nada se
discutiu acerca de melhorar a educação, fazer uma reforma política
ou escolher melhor nossos representantes. O único objetivo era
derrubar a figura que, à época, representava o Partido dos
Trabalhadores (PT). Dormia, então, a nossa pátria, tão distraída.
Em
2017, depois da deposição da presidenta democraticamente eleita, a
aprovação de uma reforma trabalhista a qual somente prejudica o
pequeno trabalhador, e na iminência de uma ainda mais nefasta
reforma da previdência, pululavam, na mesma mídia de 2015,
denúncias com provas muito contundentes de políticos, ditos
moralizadores da nação, envolvidos em crimes de toda ordem,
inclusive tráfico de influência e ilícito de entorpecentes
(considerado hediondo em nosso atual ordenamento jurídico, para o
qual não há fiança ou anistia). Todas elas – as denúncias -,
foram abafadas, assim como o clamor daqueles que se diziam contra a
corrupção. Calaram-se, também, as panelas que deram o ritmo dos
acontecimentos dantescos do fatídico 2015.
Hoje,
o país está aos frangalhos. A crise econômica finalmente se
instalou. A gasolina sobe toda semana, assim como itens essenciais da
cesta básica. Não há mais segurança jurídica, já que o órgão
supremo do nosso judiciário muda seus entendimentos como quem vai na
esquina. A certeza da impunidade daqueles cujos crimes foram
comprovados, diminui ainda mais a autoestima e a crença do
brasileiro numa melhora consistente do país. 2018 é o primeiro dos
20 anos de medidas restritivas, impositivas quanto ao corte de gastos
em áreas essenciais para os mais pobres, como saúde e educação
públicas. Os crimes de ódio aumentam na proporção do crescimento
da desesperança. A intervenção militar no Rio de Janeiro apenas
revela duas facetas de uma mesma moeda – que o medo, novamente, é
a melhor forma de intimidação, pois com ele se fortalece a
confiança nos aparatos de repressão e segurança; e que estamos na
iminência de uma provável desconstrução definitiva do processo
democrático conquistado com o sangue e as lágrimas de milhares.
Hoje,
pela manhã, participando de uma roda de discussão sobre política,
ouvi o que, para mim, já não vigorava. Falava-se acerca da aliança
de Paulo Câmara a Jarbas e a João Paulo, no intuito de enfrentar o
pleito que se aproxima e conquistar a reeleição para governo
estadual. Uma observação me chamou bastante atenção: a de que
João Paulo não poderia integrar tal aliança, por representar o
“famigerado” Partido dos trabalhadores (PT). Contra-argumentei,
pois João Paulo saiu de seus dois mandatos como Prefeito da cidade
de Recife, capital pernambucana, com a aprovação de mais de 90% da
população. Seu governo acabou com os deslizamentos nos morros,
levou saneamento básico para as comunidades mais carentes, melhorou
o ensino e a estrutura das escoolas públicas municipais e levou a
discussão sobre a gestão pública da cidade até o cidadão,
através dos Conselhos Públicos. Tudo era decidido democraticamente
e o povo reconheceu isso. Não sabendo o que dizer, a pessoa em
questão apenas reafirmou: mas ele ainda representa o PT e isso deve
significar alguma coisa.
Eu
estava redondamente enganada. Os patos de 2015 não morreram. Apenas
estão escondidos nas cascas de seus próprios ovos, esperando apenas
a próxima tresloucada manifestação para vestir suas camisas
amarelas. Ahhh … esse ano tem copa do mundo.
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